Os Relógios – Por Ana Paula Lemes de Souza

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“Precisamos estar dispostos a nos livrar da vida que planejamos, para poder viver a vida que nos espera. A pele velha tem que cair para que uma nova possa nascer.”

Joseph Campbell

Olá pessoal, como estão? Puxa, faz um bom tempo que não posto nada pra vocês, mas esse ano prometo mais coisas, se o pouco tempo que me sobra deixar. Vamos lá!
Meu conto desse início de ano é um convite para vocês abandonarem a carcaça do que são, para serem outra vez a criança que foram um dia, e que fica ali à espreita, esperando para ressurgir. Eu trabalho com a ideia de que o fantástico exista no imaginário da infância ou, talvez, que não exista no imaginário, mas no plano da realidade – e que só perdemos a capacidade de enxergar. Fica o convite para a imaginação!
Na minha história, eu disseco a mensagem dos mitos, dos folclores e das representações do cotidiano, que rememoram o poder da infância e da crença – algo que sempre acompanhou e sempre acompanhará a história da humanidade.
Queimei meus relógios e viajei no tempo e no espaço para encontrar com várias crianças e crenças de várias épocas. Espero sinceramente que gostem e viajem comigo…
Desejo a todos um ano 2015 maravilhoso! Que a criança de cada um de vocês possa reviver nesse ano! Um grande abraço!

 

Os Relógios

 

Brighton, Condado de Sussex, costa sul da Inglaterra, 21 de dezembro de 2014 d.C.

Ruminen vislumbrava aquele belíssimo espetáculo de luzes. Estava sozinho naquela ocasião e, tendo saído mais tarde do escritório, resolveu passar pela praça central para presenciar o festival Burning the Clocks. Foi trajado com o próprio terno que usava para trabalho, pois não teve tempo de passar em casa para se trocar.

A ideia de se desviar do caminho ordinário que lhe levaria em menor tempo para casa, veio assim de forma incogitada, pois precisava realmente tomar um ar fresco, afinal, sua recente candidatura à Law Society of England and Wales estava lhe tomando muito tempo e esforços. Pretendia representar a classe advocatícia, de forma a preservar o acesso à justiça e a propor mudanças estruturais para melhorar o apoio ao judiciário, incentivando a competitividade entre os escritórios e fortalecendo, com isso, toda a classe. Já estava eleito para a Law Society Council e já tinha formatado seu plano de liderança com uma nova base aliada, que esperava ser eleita no próximo ano. Foi tomado por esses pensamentos que decidiu, exatamente naquele dia, esquecer um pouco de seus planos e, tendo sido lembrado por um cliente sobre o festival, resolveu se desviar do trajeto, para apreciar o dia mais curto do ano, em que é comemorado o solstício de inverno.

Quase se arrependeu ao chegar ao local, tendo sido abordado por uma mulher de pele morena que tinha em seu rosto um relógio branco de ponteiros prateados pintado. Abrindo um sorriso natural e tendo fitado Ruminen dos pés à cabeça, simplesmente puxou-o pelo braço, arrastando-o para o meio da algazarra, repleta de munícipes e, principalmente, composta por uma multidão de turistas, de diversas etnias, cores e credos, convidando-o para uma dança não desejada.

Lembrou-se naquele momento do quanto costumava ser fascinante quando era uma criança, mais precisamente no ano de 1993, ao ver a queima das lanternas pela primeira vez, com pessoas fantasiadas com as mais fantásticas máscaras, dançando ao som da insensatez. Sentia-se naqueles tempos como se na era medieval estivesse, como se realmente os relógios tivessem sido queimados e o tempo pudesse retornar a qualquer lugar no tempo e no espaço. Via pessoas se beijando, danças, pinturas, todos os seres mágicos em papel e vida, reunidos em um só lugar. Algumas maquiagens eram um pouco macabras, embora o macabro chegasse a fasciná-lo. De mãos dadas com seu pai e com sua mãe, seu porto-seguro, aquele era o dia mais mágico de todo o universo, e se sentia realmente abençoado perante tantas divindades que acreditava que existissem.

O céu todo se decorou para felicitar sua alegria por estar vivo.

 

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La Tène, Noroeste da Europa, 270 a.C.

Ouvia-se uma canção no ar. Muitos seres rodopiavam ao som do vento, sendo que alguns viajantes solitários também assistiam àquele espetáculo de luz e de cores. Em movimentos suaves, as fadas cortavam o silêncio das florestas e cortejavam os bons sentimentos, comemorando a natureza, a paz, a vida, a beleza. Suas risadas ecoavam em todo o local, e as pessoas que por ali passavam, em meio à neblina, podiam ouvir somente aquele fantasmagórico som.

Em meio ao festival de Imbolc, cruzes de Brighid pendiam celestes cortando o horizonte. Agnes passava por aquele local no dia que se sucedeu ao festival, e esperava sinceramente que um dia pudesse se encontrar com um desses belos seres. Diziam-lhe que elas eram por demais ariscas, e capturá-las com um olhar era algo quase impossível, mas ela não precisava ver para crer e, em meio à relva, entoava uma velha canção à Deusa-Mãe. Naqueles tempos, onde imperava a sociedade Matrifocal, todo o planeta dançava ao corpo de uma mulher, e o ventre, tão quente, tão acolhedor, era a razão que ascendia a vida, esperando somente a paz.

A pequena criança, embalada pela natureza, no aquecido ventre de sua Mãe, entoava aquela canção na língua sagrada: o galês. Língua tão antiga e misteriosa quanto já diziam os ancestrais. Por debaixo das copas imensas das árvores, sentia o lado fantástico de estar viva sentada no centro de um anel mágico de cogumelos.

O povo silencioso dançava sua canção sem ser percebido, e dizem que jamais se deixava perceber. Exceto por crianças como Agnes, que conheciam a beleza estreita da vida.

 

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Ruminen se afastou da multidão. Fitou, ao longe, eles caminharem em uma loucura coletiva. Puxou seu cigarro e ficou apenas observando aquelas pessoas, enquanto se afastavam rumo à praia em procissão, carregando papéis de seda brancos e dançando ao som de uma banda local, com fadas, unicórnios, fênix, duendes e dragões pendendo sob suas cabeças, iluminados e em chamas, enquanto enormes relógios dançavam sob as mágicas criaturas pagãs ali representadas, marcando que o tempo passa, afinal, em plena época natalina, fatalmente mercantilizada.

Ruminen olha para seu lado e vê um pequeno rapaz de rua, maltrapilho, que devia ter cerca de oito ou nove anos, observando incrédulo o festivo céu pintado com lanternas. Ficou cativado e hipnotizado pela imagem do garoto e, jogando seu cigarro na rua, apagou a brasa com o solar do sapato, este que estava impecavelmente engraxado, e se aproximou do mesmo.

– Qual o seu nome?

O garoto, surpreso pela abordagem inesperada, olhou para todos os lados, tentando observar se realmente era com ele que o rapaz, tão bem vestido em requinte, dirigia-se. Tendo notado que apenas os dois ficaram naquele local, com jeito sem graça e olhar cabisbaixo, responde olhando pra sarjeta.

– Me chamam de Chad, senhor.

 

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Escandinávia, 1140 d.c.

 

Nas montanhas e florestas europeias, pequenos seres, guardadores dos lares, começaram a surgir, sendo que tinham as orelhas pontudas e eram muito elegantes. Antes viviam em florestas escuras, tão escuras que eles não podiam nunca ser vistos. Contudo, com o passar dos anos, eles passaram a habitar os lares humanos, e sempre cuidavam dos animais e das plantas, para que estes jamais fossem maltratados. Eram legítimos cuidadores e, dizem por esses quatro cantos do mundo, cuidavam tão bem do lar como ninguém.

Eles viviam escondidos nas casas e, como sentiam muito frio, costumavam se aninhar perto dos fornos e dos fogões. Tinham narizes pontiagudos, que se casavam perfeitamente com seus capuzes, igualmente pontiagudos. Eram seres muito leais, podendo viver por muitos e muitos anos em uma mesma família.

Vadenberg era amigo dos elfos e em sua família vivia Meldor, sem ser nunca percebido. Apenas o pequeno garoto era quem o notava e, embora algumas vezes, a louça aparecesse lavada, a meia costurada e a casa limpa, os adultos não poderiam entender.

Meldor contava para Vadenberg muitas histórias fantásticas sobre os pequenos elfos. Contava para o menino que, além desses pequenos seres domésticos, também havia os dissidentes, como eram chamados, que ainda viviam em meio à mata escura.

Vadenberg decidiu que sairia durante uma noite apenas para capturá-los à luz do luar. Certa vez, encontrou um diabrete em forma de coelho, mas percebeu seus olhos dourados em meio à penugem escura e, ao tentar capturá-lo, o pequeno elfo se transformou em fogo-fátuo, saindo em luz azulada pelas matas escuras.

Muitas das histórias contadas também eram sobre os Leprechauns. Leprechaun era uma espécie de elfo que se tornou amigo das fadas, e ouviu o menino dizer que estes elfos eram os melhores sapateiros do universo, que faziam os mais belos e nobres calçados para as pequenas. As fadas pagavam muito bem, ouro esse que os pequenos seres escondiam com muito cuidado no final de um arco-íris. Eram verdadeiros acumuladores, eternamente acumulando suas pratas e seus ouros, e suas casas eram os dólmens, refúgio desses pequenos e amáveis seres.

Em meio a uma dessas histórias, Meldor prenunciou:

– Vade, entenda uma coisa. Um belo dia você pode acordar e não mais me encontrar por aqui, um belo dia.

O menino nem ligou para o prenúncio de um futuro próximo, afinal, percebia que a natureza tinha a sua própria música, tão serena e suave, orquestrada por estes seres mágicos. Percebia encantadamente como uma luz na madrugada, até que um dia, tendo saído para encomendar um sapato mágico para o seu amigo Meldor, exatamente no seu aniversário de treze anos, não mais o encontrou em regresso àquele que teria sido um dia seu lar. E, quando adulto, nunca mais pôde acreditar nos elfos.

 

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– Chad, onde estão seus pais?

O menino olhou surpreso para ele diante da pergunta, balançando os ombros como quem não sabe ao certo a resposta.

Queria conversar com o garoto, mas, em seu mundo de adulto, talvez não fosse possível uma amizade entre ambos. Seus mundos estavam tão separados, em suas crenças e suas histórias, que uma aproximação parecia ser algo impossível. Foi quando algo lhe ocorreu.

“O que caracteriza todas as crianças do mundo, não importa o lugar e o tempo em que vivem? O que faz de crianças criaturas tão mágicas e especiais?” A resposta estava assim na ponta da língua e era clara como um cristal: “o que faz de crianças, crianças, é justamente o poder de acreditar: a fé, a esperança e a credulidade”.

Foi então que retornou às imagens de sua própria infância, em busca de respostas. O que havia feito para deixar aquela criança morrer, passando a residir em um mundo tão incrédulo e banal, onde nada tem mais graça? Olhou para o garoto e percebeu nele sua própria imagem, quando era ainda pequeno, onde o mundo não tinha um código preestabelecido e não havia limites para a sua imaginação.

– Venha comigo. O que estamos fazendo parados aqui, olhando a festa passar?

E puxou Chad, que gostou da ideia, levando-o rumo à multidão de transeuntes, inebriados e pagãos, em direção às ondas da praia. Ruminen se divertiu como se fosse criança outra vez, enquanto Chad, embora tivesse uma vida tão dura e difícil, deixou reinar a esperança em seu mundo possível.

 

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Coventry, região central da Inglaterra, 1940 d.C.

 

Guerra. Fogo. Ar. Heitor observava inerte àquela cena inexplicável aos olhos de crianças. Não entendia de onde aquele tumulto pudesse surgir: talvez de um universo paralelo dos adultos, esse universo de imaginação que somente os “grandes” podem entender. Afinal, a idade cega.

Vendo de um campo, na visão pequena e simplista, observou que um pequeno ser causava problemas mecânicos em aviões. Não pôde entender muito bem naquele momento, mas ficou maravilhado com a visão do avião sendo derrocado em pleno ar, e partindo em pedaços no meio do céu. Seu avô lhe contara que aqueles eram os gremlins, essa história que a criança de cada geração repassa às crianças das próximas gerações. “Os contadores de histórias eram, afinal, aqueles adultos que nunca deixavam a criança que em si habita morrer”, pensava.

Em seu ápice, chegou a imaginar que talvez aqueles seres mágicos fossem verdadeiros justiceiros, um pouco trapalhões, talvez, mas vingando sem querer a guerra que lhe tirou, afinal, um lado amável da infância. Passou, então, a admirá-los, em verdadeira obsessão, já que a juventude, ainda na guerra, é algo mágico.

Durante o tempo em que esteve por lá, parado, arrastado, por coisas que não pediu para que acontecessem, conheceu muito seres terríveis.

Um dia, tentando dormir, foi surpreendido por um ser asqueroso, que imaginou que fizesse o armamento de tropas inteiras, pois as utilizava até nos dentes. Esse ser veio em seu lar em busca de um pouco de leite e comida, coisa que sequer a guerra lhe deixou. Outra vez, enquanto silenciosamente caminhava pela estrada, foi abordado por um ser enorme e grotesco, tão violento que em um só movimento o capturou. Teve que negociar sua partida, em troca de um pouco menos de tempo de imaginação.

Foi sucumbido durante muito mais tempo por seres mágicos: goblins, orcs, dentre outros. Mas o ser mágico que mais lhe deixou marcas com certeza foi à guerra, enaltecida em canções, como uma ferida aberta e latente, prestes a se romper.

 

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Gräfenroda, Floresta Thüringer, 1320 d.C.

 

No subsolo, ouve-se um som contínuo, ininterrupto, de trabalhadores incansáveis, noturnos e diurnos: os anões. Tais seres, embora de baixa estatura, são muito habilidosos com as mãos, podendo fazer obras belíssimas, transformando metais comuns em objetos mágicos. Outros vivem também em montanhas, nos Alpes, e têm pés tão grandes que lhes servem de esquis. Todos eles adoram noites iluminadas pelas estrelas, e são seres muito festivos e apegados à família.

Seus primos distantes, os gnomos, são seres cavernosos, que fazem verdadeiros palácios subterrâneos. As barbas são sempre brancas e os gorros sempre vermelhos. Quando fogem à superfície, vê-se de relance por entre as raízes das árvores, em um mero farfalhar de folhas, pequenos pontinhos vermelhos, sendo que somente os olhos mais ligeiros podem vê-los.

Clarice gostava de observar os pequenos gorrinhos correndo por entre o verde, e ficava verdadeiramente encantada com tais pequenos seres. Certa vez, encontrou perdido em um galho um cristal, e sabia que se tratava de um tesouro dos pequeninos, pois ouviu dizer que estes eram os guardiões das pedras preciosas.

Guardou em seu porta-jóia, esperando seu dono vir algum dia buscar. Ela nunca deixou de acreditar que um dia ele viesse, tendo enfeitado o seu jardim com pequenos anões de argila, como um palácio que espera festivo o regresso de seu rei.

 

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Mitos: histórias atemporais e universais que nos lembram do significado da vida por meio de símbolos.

Vendo aquelas lanternas perambulantes, Ruminen chegou à conclusão de que aquele festival, Burning the Clocks, era um dia em que se celebrava a infância. Entendeu finalmente o que jamais tivera o poder de entender: os relógios queimados simbolizavam que, tenha você nove ou noventa anos, acreditar é sempre urgente e preciso. O tempo existe apenas aqui, na nossa imaginação, e envelhecer ou não é sempre apenas uma questão de opção.

Com seu novo amigo, Chad, visitou novamente mundos que nunca imaginava regressar, apenas em pensamentos. Crianças de todos os tempos e vivendo sob as mais insofismáveis circunstâncias, sempre sonham, e esse sonho coletivo se torna um mito, que se repassa de geração a geração, mantendo acesa a chama da humanidade.

Aquela cena de um rapaz tão alinhado e seu pequeno amigo farrapo, podia parecer estranha para um olhar adulto, adulterado por realidades socialmente inventadas e convencionadas. Mas para um olhar desnudo de uma criança, aquela era uma cena comum, ordinária, que acontece todos os dias em qualquer lugar do planeta.

Chad nada mais tinha a não ser a roupa do corpo e mais alguns sonhos, e Ruminen nada mais tinham agora do que uma amizade, simples e verdadeira. Afinal, enquanto nascerem crianças, estarão as lendas acesas. E enquanto os adultos mantiverem as crianças que em si residem vivas, em nosso mundo reinará a paz.

 

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Tenho outro conto publicado aqui no Supremacia Geek também, o Borboletas Brancas.

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Ana Paula Lemes de Souza
Ana Paula faz parte de uma geração apaixonada por fantasia, música e arte. Nasceu com um sonho: ser uma fada. Outro sonho: ser deus. Agora pode ser ambos enquanto escreve, fazendo voar nos pensamentos e criando em histórias um novo mundo. É mãe, advogada, militante e, nas horas vagas, pode ser quem mais quiser. Fada do destino que, em estrofes torpes, traça um universo inteiro!
Ana Paula Lemes de Souza

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