Borboletas Brancas

Borboletas Brancas – Por Ana Paula Lemes de Souza

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“Ela era branca, branca.

Dessa brancura que não se usa mais.

Mas sua alma era furta-cor.”

Mario Quintana

Olá, este é meu post de estréia aqui no Supremacia Geek, então queria trazer algo especial, por isso selecionei o conto Borboletas Brancas, com o qual fiquei em terceiro lugar no desafio “Fantasmas” do site Entre Contos. Este foi o mais recente entre os diversos prêmios literários que ganhei (o primeiro quando tinha apenas 8 anos).

Espero que gostem!

Borboletas Brancas

♫ Dó ♫

Ela acabara de chegar ao vilarejo de Kamenica e devia beirar seus trinta anos. Morava sozinha em um casebre na montanha, que se localizava de frente para a igreja, com ares de um passado medieval, onde a modernidade ainda não havia tocado com suas mãos fogosas. O vilarejo era pequeno, tranquilo, com seus ilustres duzentos e três habitantes. Dava aulas de piano para as crianças e era sempre muito alegre e amorosa, com vestidos azuis anis e sorrisos floridos, que marcavam seus ares joviais, como que nascidos na primeira manhã.

 

Em Kamenica, os campos eram verdes, resplandecentes. Ravenna era como ela se chamava, e seu perfume era de laranja e baunilha, que vazava temerário dentre seus seios rijos e sardentos. Vivia seus dias entre as crianças, seus discos do conterrâneo Ivan Ilić e chás da tarde coloridos por flores e sorrisos prazenteiros. Com ar professoral, usava grandes óculos com hastes negras, contornando seus belos cabelos ruivos, que ardiam como labaredas de fogo. Tinha esse ar pueril dos ruivos, com sardas, olhos azuis celestiais e longas pestanas acobreadas: uma feição de quem precisa ser protegida. E foi por esta imagem que ele se apaixonou, jamais deixando um só instante de estar ao seu lado, sem ser notado, como uma sombra parca, em sua farda surrada.

 

♫ Ré ♫

Kamenica acolhe o maior cemitério clandestino de toda a história. Vila da Sérvia, faz parte do município de Bojnik, localizado na fronteira com Iugoslávia, que abriga quase um mil e quinhentos corpos, oriundos dos mais temíveis crimes de guerra da Bósnia. Toda a vila está cercada por corpos, sendo que o número de corpos mortos clandestinos supera em muitas vezes o número de corpos vivos, perambulando incessantes na paz do vilarejo, algo como um sepulcro em vida.

 

Os corpos alimentam as plantas, as flores de Ravenna, que teimam em nascer. Os campos verdes são caminhos constantes da moça, quando precisa ir a alguma mercearia, ou mesmo quando deseja fazer suas caminhadas soturnas na noite sem claridade. Ela pisca como luz, em sua timidez, de quem quer esconder a beleza e esplendor, mas sem sucesso. Seus passos são largos e formosos, encantando a todos os habitantes da pacata, mas fantasmagórica cidade.

 

♫ Mi ♫

 

Foi em uma tarde que Ravenna estava indo para cidade quando encontrou com a sua aluna, Mika. Esta veio correndo dar-lhe um beijo na fronte, deixando as mãos cerradas de sua mãe.

 

– Tia! Vamos brincar?

 

Ravenna deu-lhe um largo sorriso e dirigiu um cumprimento tímido para a mãe, buscando sua aquiescência, que observava insossa.

 

– Claro, de quê? – respondeu sorridente.

 

E a menina, com a imaginação própria das crianças, começou a narrar uma consistente história, que deveria ser representada, como um teatro inventado no momento. A professora era uma princesa perdida no bosque, enquanto a menina era uma fada madrinha que deveria libertá-la do castelo mágico dominado pela bruxa má. No meio da brincadeira, uma linda borboleta branca pousou no ombro da Ravenna e assim ficou, sóbria e decidida, sendo incorporada na simulação. A menina falou que ela era na verdade um mago encantado que veio para proteger sua professora. Nesse momento, no ápice da brincadeira, a mãe chamou Mika, que depois de insistir, teve que concordar em ir, mas não sem um franzir de sobrancelhas dirigido à figura materna.

 

A professorinha ficou assim, divertindo-se com a imaginação de sua aluna. Dominada pelo espírito infantil, imaginou que a borboleta branca estava murmurando algo em seu ouvido, chamando-a para embrenhar mata adentro e, assim que voou, ela seguiu-a, em uma divertida corrida.

 

♫ Fá ♫

É até difícil de acreditar, nem mesmo Ravenna acreditou no que viu! Embrenhando pela floresta, ela se debruçou sobre uma fronha de arbustos, como um corredor, e acabou adentrando em um local estranho. Estranho não, estranhíssimo: uma cidade fantasma. É como se houvesse uma cidade gêmea de Kamenica, só que sem uma viva alma perambulando pelas ruelas. Os ventos ressoavam como em cânticos góticos, as portas entreabertas sem ninguém por perto, uma bandeira rasgada hasteada em um imóvel velho, uma roda gigante aparentemente enferrujada. Uma cena como vinda de um sonho!

 

O corpo de Ravenna estava imóvel e a sua respiração, ofegante. De repente, imersa em seu sôfrego destino, que era estar ali, uma ruiva desamparada, entreabriu levemente seus olhos, imaginando estar vendo vultos. Arrazoou que poderia estar dormindo – era um sonho, esta era a única explicação plausível! Afinal, em um olhar apaixonado, a cidade era toda fascinante, com seus ruídos macabros, como se a solidão entoasse uma triste música, formada por acordes do inexplicável.

 

De súbito, sentiu algo se encostando aos seus ombros: uma mão masculina, que forçosamente lhe puxou. Não pôde ver quem era, sequer pôde se conter. Desmaiou embriagada em sua possível loucura.

 

♫ Sol ♫

 

Era manhã e o sol já estava nascendo. Ravenna esfregou seus olhos e respirou aliviada, percebendo que estava dentro de sua casa, em sua cama. Uma música ressoava da sala, triste, melancólica, mas hipnotizante. Correu para ver de onde vinha o som e ficou assustada, quando percebeu que era das mãos de um homem, que de longe lhe sorria, enquanto tranquilamente continuava a entoar a sua música no piano. Pensou que fosse mais uma vez desmaiar, mas se conteve, hipnotizada que estava com a música tocada. Assim que ele terminou, ela acordou de sua quimera, e se dirigiu a ele, pronta para colocá-lo para fora de sua casa. Antes que ela pudesse dirigir-lhe qualquer palavra, ele prontamente exclamou:

 

– Eu sei que você não me conhece, mas eu te conheço desde o primeiro dia em que você pisou nesta cidade, e nunca deixei um só momento de estar ao seu lado.

 

Naquele instante, ela fitou-lhe o rosto, assustada. Como poderia aquele homem conhecê-la d’antes? E o que fazia ele dentro de sua casa, sem a sua anuência? Pela primeira vez observou seu rosto de perto: tinha a face serena, olhos acinzentados, com espessas sobrancelhas, e um sorriso tranquilo, como de quem nada tinha a perder. Com a pele de um moreno suave, tinha os cabelos castanhos, levemente ondulados, que iam até os ombros, e a barba estava por fazer, o que lhe dava um aspecto menos formal, contrastando com a sua farda. Sem dúvidas, era um homem belo, talvez o mais belo que Ravenna já tinha visto em Kamenica.

 

– Mas, mas, mas… – E nada lhe saiu pelos lábios.

 

– Ravenna, não quero ser desleal com você, e é bom que saiba a verdade desde este primeiro momento. – Nisso, pegou uma plaquinha, que estava em sua farda, e entregou nas mãos esbranquiçadas e gélidas da ruiva, apertando-lhe com doçura – Meu nome é Matija Sandsa, sou uma alma, alguém que há muito já deixou esse mundo, e aquilo que outrora foi o meu corpo está embaixo de sua casa. Antes de você chegar, eu não tinha esperanças de que o mundo voltasse a ter graça, mas então, você apareceu e tudo mudou. Eu era aquela borboleta branca que lhe apareceu, e trouxe sua alma até aqui, ao mundo dos mortos, à minha Kamenica, para passar apenas esse dia comigo. É tudo que eu lhe peço.

 

Foi tanta informação de uma só vez que Ravenna sequer pôde processar! Como poderia aquilo estar lhe acontecendo? Estar com um ávido fantasma, em uma cidade fantasma? Então, sem pensar, respondeu:

 

– Matija, tudo o que eu tenho é um nome e uma proposta. Agora eu tenho o seu nome como meu e a sua proposta como aceita. – Então guardou a plaquinha dentro de sua roupa e tomou-lhe as mãos.

 

♫ Lá ♫

 

Caminharam durante um tempo em um silêncio sepulcral. Dirigiram-se à igreja, de onde vinha uma música sacra. Diferente de antes, a cidade continha muitas pessoas, que a olhavam assustadas. Os murmurinhos não pareciam incomodar a Matija, que segurava Ravenna, sem se importar com os demais.

 

Contou-lhe que foi morto na carnificina de Srebrenica, sendo que servia na época ao Exército Bósnio da Sérvia. Filho de um aristocrata sérvio e de uma mãe mulçumana, sob as ordens do general Ratko Mladić, presenciou o maior massacre selvagem, contra aqueles que eram sangue do seu sangue, mulçumanos como ele próprio. Ao ver crianças sendo mortas, na frente de suas mães, seus comparsas estuprando as mulheres, pais mutilados, algo ascendeu nele, que virou um revoltoso contra o próprio exército do qual fazia parte, deixando escapar prisioneiros e salvando famílias. Contudo, seu heroísmo não duraria muito tempo. Ao ser descoberto, foi morto da forma mais cruel, pelo seu ex-líder, trucidado membro a membro, para que pudesse assistir à sua própria morte e para que contemplasse seu sangue se esvair até se findar. Por fim, foi jogado em uma vala em Kamenica, sendo que o local, muitos anos depois, passou a abrigar a casa de Ravenna. Sua alma perambulou sem paz, sem descanso, até que viu a figura encantadora da professora de piano.

 

Contou-lhe sobre o reino dos mortos e sobre os segredos que somente os Renegados sabiam. Ravenna pouco teve o que lhe falar, já que Matija tudo sabia sobre ela. Apenas divagou sobre suas crianças, seu mundo e sua música. Estavam juntos, naquele instante, mas separados pelo mais terrível dos algozes: a morte. Uma morte que não deixou espaço para um encontro pretérito, ainda em vida.

 

A lua brilhava opaca e Ravenna sentia seu corpo leve como uma pluma. O luar iluminava seu vestido branco, que resplandecia em beleza. Era como se tivesse se desprendido da amargura que a vida impõe e tudo agora era mais límpido e suave. Contemplou a cidade dos mortos e ficou a imaginar quantas mais cidades fantasmas poderia o mundo abrigar neste exato instante. Sentiu-se abençoada perante as estrelas, por aquele momento único e irrepetível e por ter-lhe sido revelado tão singelo segredo! Percebeu que até então não tinha vivido um só instante da sua existência, mas que apenas estava de passagem. Ficou claro como um cristal: não havia fim, mas recomeço!

 

A completude vinha das estrelas, de um ar leve soprado pelos deuses, que fazia seu corpo voar, sentindo-se unida à terra da qual veio e para qual um dia voltará. Não sabia quando e sequer queria saber. A morte era a única certeza que se impunha em um mundo sem certezas, a sua nova melhor amiga. Era como se estivesse envolta em uma melodia insaciável, em uma fonte inexaurível, que era enfim pertencer ao mundo, ou à continuação deste, e Matija era a resposta que procurava, mas que nunca encontrou. Contudo, era união impossível… “Deus escreve certo por linhas tortas”, lembrou-se de sua velha avó dizendo.

 

Deu-lhe um único e longo beijo e logo o dia se findou. Ele lhe explicou que ela deveria voltar, senão iria permanecer para sempre naquele local. “Juntos, quem sabe em outra vida”, foi a última coisa que lhe disse. Embora algo em seu coração a pedisse para ficar, Matija insistiu para que Ravenna fosse embora, pois não podia desejar a morte para quem mais se ama. Não quando a sua hora ainda não havia chegado.

 

Pediu que voltasse por onde veio, logo sua alma perambulante se religaria ao seu corpo, despertando. Matija lhe explicou que não voltariam a se encontrar, pois isso terminaria por tirar a vida de Ravenna – despregar a alma e ir para outra dimensão era algo mesmo sério, que não se acontece duas vezes em uma só vida. Mas ele continuaria a lhe esperar.

 

♫ Si ♫

 

Ravenna seguiu por onde veio e se deparou com seu próprio corpo, desfalecido, caído ao chão. Fechou os olhos e logo foi puxada de volta ao seu próprio invólucro material. Acordou de supetão, sem saber se tinha realmente vivenciado aqueles momentos ou se tudo que vivera tinha sido só um sonho – um doce sonho. Ao olhar pelas folhas de onde veio, nada tinha, a não ser folhas, em uma penumbra sem fim.

 

♫ Dó ♫

 

Memórias fortes ficam eternamente ecoando, lembranças boas sempre nos batem à porta e dúvidas imponentes sempre voltam, como se dançassem circulares. O universo se faz de círculos, como notas musicais, que sempre retornam de onde vieram. A vida que se torna em morte, a morte que se torna em vida, o sol que se torna em chuva, a chuva que faz nascer um novo sol, tudo formando uma só melodia… O dó que sempre retorna ao dó.

 

Ravenna usava um coque no alto da cabeça e o cabelo que outrora era cobre agora reluzia ao mais puro branco: o branco que sempre retorna. Foi em um domingo, costurando seu tricô, quando o sol estava se pondo, que sentiu uma brisa diferente batendo-lhe na fronte. Nunca revelou a ninguém o encontro com o fantasma, nem mesmo aos seus filhos ou ao seu falecido marido. Rodeada por seus netos e bisnetos, que alegremente brincavam sob seus pés na cadeira de balanço, viu uma borboleta branca pousando em uma de suas flores. Era um prenúncio de um futuro próximo. O amor sempre espera…

 

Ainda guardava em seu seio a plaqueta de metal, marcada Matija Sandsa. O vento que lhe batia na fronte era como seu beijo, fantasmagórico, gélido e pérfido beijo. Era um prefácio de um livro, um novo começo. “Juntos, quem sabe em outra vida”. No piano, sua filha tocava uma velha composição: “Roma Ecnev a Etrom”. Respirou e fechou seus olhos uma última vez. Luz.

É possível ler também a versão em inglês de Borboletas Brancas (traduzido por Catherine Howard) no site Contemporary Brazilian Short Stories (CBSS). Borboletas Brancas também foi selecionado para uma coletânea da Caligo Editora.

Você pode conferir meu livro, O Vento me Soprou, disponível no formato eBook na livraria Travessa ou na Perse no formato tradicional ou eBook.

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Se você gostou desse conto, pode conferir mais aqui.

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Ana Paula Lemes de Souza
Ana Paula faz parte de uma geração apaixonada por fantasia, música e arte. Nasceu com um sonho: ser uma fada. Outro sonho: ser deus. Agora pode ser ambos enquanto escreve, fazendo voar nos pensamentos e criando em histórias um novo mundo. É mãe, advogada, militante e, nas horas vagas, pode ser quem mais quiser. Fada do destino que, em estrofes torpes, traça um universo inteiro!
Ana Paula Lemes de Souza

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